quarta-feira, janeiro 12, 2005

O grotesco, o perturbante e o extraordinário


Escrevo agora sobre um expoente português da pintura. Cheguei há pouco do belo Museu de Serralves e da estrondosa exposição de Paula Rego. Fui tarde. Fui apenas depois de outras cem mil pessoas. Grandiosa não só em Portugal como em Inglaterra, onde mora, este vulto feminino da arte parece incansável naquela que é a mais profunda exorcização do horror. Não um horror fantasmagórico. Antes um horror perfeitamente humano, perfeitamente exequível. No domingo a RTP2 passou um documentário com uma panorâmica (muito) geral da obra que está exposta em Serralves. A impressão com a qual me deixou Paula Rego nas suas declarações foi a de alguém que não quer fornecer dados que facilitem a análise das obras, a de alguém que não quer decompor aquilo que faz, que está ali apenas como mero instrumento da arte (a arte!). Quando a guia nos perguntou se tínhamos visto algum documentário sobre a exposição, foi referido esse tal da RTP2 e ela disse “Ah, aquele no qual ela decidiu dizer que não percebia nada disto e que deixava as impressões ao critério de cada um. Pois. Não se fiem. Ela devia estar mal disposta …”. Mas compreendo. Ser artista não deve ser fácil. O auge do inquietante e do extraordinário surgiu na incrível analogia entre a história do capuchinho vermelho e a tradução de uma situação de complexo de Electra. Outros grandes pontos são a tela ‘Olga’, sobre a fusão do papel do homem e da mulher em sociedade, ou a série de sete telas sobre a mulher que se contorce na cama, ou a tela do Homem-Barata (inspirada na Metamorfose de Kafka), ou as telas baseadas n’O Crime do Padre Amaro. E pergunto-me, será isto um vasculhar dos mais cavados infernos da realidade rente a qualquer um de nós ou apenas a expressão visual de opiniões quanto a assuntos polémicos como aborto, o abuso de menores, a traição, a carne, a ética, os distúrbios psicológicos…? Merecerá Paula Rego o rótulo de tétrica quando revela que o único castigo que o padre Amaro deveria ter era o da tomada de consciência?


S.C.

Rubén Darío

Rubén Darío nasceu em San Pedro de Metapa (hoje Ciudad Darío), no ano de 1867 e morreu, na mesma cidade, em 1916. Nesses quarenta e nove anos de vida tornou-se o expoente máximo do modernismo hispano-americano.
O modernismo, na literatura hispano-americana, corresponde, cronologicamente, ao simbolismo em Portugal. Contudo, Octavio Paz, no seu ensaio El Caracol y la Sirena, identifica dois momentos essenciais deste movimento: um primeiro momento, marcado pela transição entre as influências românticas e os modos parnasianos; e um segundo momento, que agrega aos modos parnasianos, extremamente visuais, os modos simbolista, ricos em musicalidade. Rubén Darío, num artigo publicado num diário argentino destacava como grandes influências Edgar Allan Poe, Verlaine, Rimbaud, Nietzche, entre outros. A esta lista há ainda que acrescentar, por outros textos anteriores e posteriores, os nomes de Baudelaire e Laforge, decisivos na segunda geração modernista, e o de Walt Whitman, como modelo directo e como forma de irritar os críticos castelhanos que os acusavam de «galicismo mental».
Rubén Darío, como o próprio modernismo, não pode ser lido como um cenário linear. Deve antes ser entendido como um espaço de cruzamentos e de encontros, cenário que junta as mais variadas vozes, das mais distintas procedências. Deste cenário de convergência surge uma crítica aberta ao atraso cultural da América Latina, proclamando a necessidade de uma sociedade hispano-americana cosmopolita ao jeito de Paris e Londres. Mas ele não foi apenas um modernista. A sua crítica e a sua obra, ultrapassando a linguagem dessa escola acaba por superar qualquer escolástica, ganhando um símbolo que vai para lá da sua identificação com qualquer corrente artística.
Assim, lamento que em Portugal a divulgação da sua obra seja tão pouca. Admitindo que talvez as haja, desconheço qualquer tradução para o português dos seus poemas. O pouco que se pode encontrar resume-se a meia dúzia de exemplares, em castelhano, nas estantes de pouquíssimas livrarias.
Lamento também, porque havendo traduções de outros poetas como Garcia Lorca e Juan Ramón Jiménez, se ignore quase totalmente Rubén Darío que foi uma das maiores influências daqueles dois poetas. Outro dos grandes da literatura hispano-americana ensina-nos que a biblioteca é interminável. Não seria já altura de expandir a nossa biblioteca a estes novos horizontes, de acrescentar às prateleiras da nossa esfera de centro hexagonal as obras de Rubén Darío?

D.P.

sábado, janeiro 08, 2005

Ainda W.G. Sebald

Parece que, afinal, os brasileiros vão à frente. Enquanto a Teorema não edita Os Emigrantes, lemos isto.

S.C.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

W.G. Sebald

Sebald é o meu mais recente achado. Austerlitz, traduzido recentemente para o português, editado pela Teorema, é uma verdadeira viagem por lugares toldados. A descrição aparece-nos como se a Europa fosse uma longa avenida que uma personagem deambulante disseca, não só através do momento fugaz das impressões como também através da captação filtrada da realidade e que se traduz numa relação de conhecimentos com uma significação muito individual mas devidamente alicerçada. Há nestas narrativas uma invocação constante da memória como uma associação de sensações diferentes no tempo e no espaço mas que se interligam para se poderem ramificar nos vários aspectos da história de Austerlitz (não constituindo isso um paradoxo, pois a interligação e a ramificação ocorrem em momentos diferentes). O facto da densidade psicológica da personagem se misturar com a descrição dos espaços é algo que faz das delineações uma totalidade narrativa.
Mas não se julgue que esta é uma escrita melodramática ou excessivamente reflexiva. Tacteiam-se paisagens desoladas, mansões desabitadas há séculos, catedrais vazias. Ou seja, em Sebald a natureza é algo inóspito e os pensamentos são forrados por um pragmatismo doloroso.
No fundo, tacteia-se a ruína humana, como se a existência fosse apenas um final, mas um final corpóreo, simples.
De quando em quando podemos apreciar fotografias tiradas pelo próprio Sebald a partir de mapas e velhos manuais que procuram ilustrar o que é narrado. Umas com mais ligações directas do que outras, o que constitui um exercício de associação curioso.
As imagens interrompem as letras como um silêncio a erguer-se e a transpor o papel.

Escritor alemão, professor de literatura europeia na Universidade de East Anglia, em Norwich, foi o primeiro director do British Center for Library Translation.
Faleceu num acidente de viação, em Dezembro de 2001, aos 57 anos, no apogeu da sua produção literária.


S.C.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Uma música de encantar

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor -
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
A ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.


Annabel Lee
Edgar Allan Poe
(Tradução de Fernando Pessoa)

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Um poema

Desenho-te suspensa à janela de casas mal equilibradas
Criando na mão melancólica dos dias
O caminho de uma impressão de aves.

Anoto na tua pele o sangue que recolhemos das águas
Fazendo das algas as linhas trémulas do rosto
Tatuada pelos anjos fragmentados.

Dá-me uma lança que será o antecedente da palavra,
Porque se ao espelho parecem a mesma,
Também este beijo repassa
A maleabilidade incontrolável das mãos,
Que tentámos, os dois, deixar caiadas.

Para a Mão Melancólica, "The beautiful Annabel Lee"
D.P.

Juventude

Talvez por eu ser jovem, pelo David ser um jovem, ou então talvez apenas para alimentar um exercício impudente de narcisismo, permito-me realçar aquela que é a alba da vida.
Rimbaud, aos nove anos começou por questionar o funcionamento curricular do sistema da escola. Passado um ano, escrevia os seus primeiros versos em Latim. O interesse expedito pela poesia revela-se com treze anos. A partir de uma certa altura, todos os dias contemplava as pequenas livrarias que se afiguravam no trilho que o levava à escola. Aí lia a revista “Parnasse Contemporain” onde encontrava o que de mais hodierno existia como Théophile Gautier, Théodore de Banville e até mesmo Paul Verlaine, um dos, senão mesmo ‘o grande’ emblema amoroso em toda a sua vida. Era frequentemente premiado em concursos literários e assim estimulado para a escrita. A sua visão poética foi a libertação das sufocantes instituições que forravam o seu universo pessoal que até ao momento eram a escola e a família.
Em Rimbaud, há uma parte da sua adolescência que podemos traçar, como paralela, à criação de “Une Saison en Enfer” porque esta é uma obra dificilmente explicada apenas por si.
O que eu quero realçar com isto é que há um impulso criador que pode anteceder o empirismo, talvez até de uma forma mais fidedigna se pensarmos na perspectiva factícia de Descartes: as ideias vistas como uma combinação de imagens provenientes dos sentidos, retidas pela memória e que nos permitem representar o que nunca vimos e talvez o que descobrimos mais tarde não existir coisa que, uma vez comprovada, nunca poderá ser representada como o é se se situar anterior à experiência.
Espero que isto tenha servido para dar alguma credibilidade a este blog. Provavelmente, não serviu. Mas valeu-me o esforço.


S.C.

terça-feira, janeiro 04, 2005

O errante da Abissínia

É, quase sempre, tão estranho ler “Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.” e acreditar que a mão que gravou estas linhas apenas tinha dezanove anos. Apenas? Talvez não, talvez tivesse já a idade mais que suficiente para fazer aquilo que fez. Num cenário tão surreal, uma autêntica noite no inferno, só a virgem doida poderia ter revolucionado a poesia, só aquele portador do mau sangue, descendente do ruivo, poderia ter feito aquilo que muitos, provavelmente, só acreditariam ser viável nas mãos de um esposo infernal. Rimbaud teria necessariamente de ser o que foi, já que se nuns poucos não encontramos paralelo vital que dê sangue à existência lírica, no poeta das Ardenas tudo se confunde como se a poesia fosse a própria vida e, ao mesmo tempo, num detalhe único, como se a sua vida (e, assim, a sua poesia) fosse toda a história da poesia até ele. Chegarei ao ponto de dizer que os dezanove anos de Rimbaud chegaram para tudo. Chegaram para resumir toda a poesia que o precedeu. Chegaram para anunciar toda poesia que estaria por vir e, pelo meio, ainda teve tempo de fugir, participar na guerra, viajar pela Europa, etc. E Rimbaud deixou-nos tudo isso num mapa único: Une Saison en Enfer.
Por isso direi que precoce ao jeito de Rimbaud ninguém o é, já que precoce é algo que ele não foi.


D.P.

Resumo de um começo

Para mim. A história das minhas loucuras. Há muito me gabava de possuir todas as paisagens possíveis, e julgava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia moderna. Gostava das pinturas idiotas, em portas, decorações, telas circenses, placas, iluminuras populares; a literatura fora de moda, o latim da igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos antepassados, contos de fadas, pequenos livros infantis, velhas óperas, estribilhos ingénuos, ritmos ingénuos. Sonhava com as cruzadas, viagens de descobertas de que não existem relatos, repúblicas sem histórias, guerras de religião esmagadas, revoluções de costumes, deslocamentos de raças e continentes: acreditava em todas as magias. Inventava a cor das vogais! - A negro E branco, I vermelho, O azul, U verde. Regulava a forma e o movimento de cada consoante, e , com ritmos instintivos, vangloriava-me de ter inventado um verbo poético acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos. Era comigo traduzi-los. Foi primeiro um experimento. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.

Alquimia do Verbo
JEAN-ATHUR RIMBAUD
Tradução de Paulo Hecker Filho