quarta-feira, novembro 16, 2005

Licantropia

Digo tu
Para explicar a forma exacta com que me abres o peito
& operas o meu coração no centro da tua pele.

& rasga-a
Ao mesmo tempo que desço no teu corpo
Para roubar das tuas mãos o gesto com que me sufocas a carne.

Digo eu
& só isso basta para explicar por onde sobes nas manhãs
Em que a minha pele também aparece cortada.

& toma-me
Porque assim brilha a luz quando me escreves nas costas
& no fogo é que a nossa boca se gasta.

D.P.

segunda-feira, novembro 14, 2005

Sonho americano

Outra vez às seis no sítio do costume.
Os mesmos assuntos: os nossos pais
& outros pedaços amargos da vida
como imagem arrogante da sexta elegia de Duíno.
Hoje não chovia, de resto,
os antídotos foram semelhantes: uma música mainstream,
a aspiração a uma carreira arrivista
& uma infusão de ervas servida na esplanada.

Mas sabes? A América de Ginsberg é ainda a terra idiota em que nos sonhas:
Tu… actriz… Tiffany… little brown bag & as chaves dum apartamento.
Eu… poeta… New Yorker… encontrar Kerouac à boleia para Denver.

Tens – Marilyn – de realizar o teu sonho americano,
porque eu quero que o meu poema se cumpra em terras do Boston Tea Party.
Tens – my blonde chic – que acender um cigarro nas terras vermelhas
& apoiar os Yankees um domingo qualquer.
Tens, já que este país te faz ser estrangeira até na alma, Marilyn,
& I want you to keep dreaming of it.

D.P.

Sleeping out

Para a Cátia

Encontro-me uma noite deitado,
dobrando o meu corpo sobre o teu tronco nu.
Dizes-me: quero voltar a sentir-te sismo.

& na ponta do olhar estiolamos as palavras,
vendemos um beijo para pagar o aluguer dos corpos.
Digo-te: quero amanhã voltar a estar contigo.

&, repentinamente, um sismo perpassa-me a ponta dos dedos,
adquiro a forma de uma criança assustada.
Eu, ao adaptar-me enrugado aos nossos lençóis,
Nunca deixarei de tremer ao recordar-me aqui
Nascido no momento em que a morte me ensaias.

D.P

segunda-feira, outubro 24, 2005

Princesa adormecida

Pára! Desculpa – interrompo-te na rua –
sabes dizer-me se morrer é uma arte
ao executámo-la os dois excepcionalmente bem?

E tu, com um cigarro a fumar-nos o poema,
Deixas cair tragicamente um livro do Al Berto,
À procura de um verso para me responder.

Olhas para mim e vês morte suficiente para O Medo
folhas lilases com cinza, onde a tinta preta por si só
não consegue explicar duas almas que se pensaram geminadas.

Afastaste, volto a interromper-te – Desculpa-me!
Como podes fazer de um tal gás o teu perfume
E compelir-me com as palavras a dançar nos teus cabelos?

para Sylvia Plath

DP

quarta-feira, setembro 28, 2005

Os Barcos

Sou de um lugar onde os homens partem com as costas voltadas à casa.
No parapeito dos dias as mulheres tecem as suas tristezas,
As crianças brincam aos barcos como se espreitassem para lá das vidas.

Do mar apenas falamos como hipérbole da nossa alma,
À medida que vamos sendo incapazes de distinguir o sangue do sal
Na hora de cozinhar as melancolias.

Nos portos sondamos através da fechadura dos mares
O início da nossa história e eis que vemos os nossos pais
A naufragar com os sonhos deste império.

Somos do mar como a alma é da dor ao fragmentar-se a vida.
Vestimos o olhar de espelhos, viramos as costuras ao corpo.
Imitamos o homem da casa a que desconhecemos o rosto.

Nasci num lugar onde ninguém nos segue ao adormecer,
Onde as nossas mães, de olhares cristalizados na partida,
Apenas esperam que a saudade chegue para morrer.

E eu morri sem ter visto o meu pai regressar a casa.
Ele de costas voltadas à terra e eu sem olhar o mar,
Nunca fomos alimento suficiente para o amor.

Nunca fomos mais do que a explicação de um pequeno reino
Que vive com a parte de dentro do corpo exposta ao sol,
Para que os braços crespados pelas queimaduras
Nunca mais voltem a sonhar com barcos.


D.P.

quarta-feira, julho 13, 2005

A tua casa

A tua casa solta as suas raízes de ouro.
Eu espero, num lugar entre a porta e o medo,
Que à janela venhas sacudir o teu amor.

Na rua as vizinhas olham das varandas,
Recolhem os filhos com a alma.
Escondem-se ao sussurrar a minha espera.

Da minha alma o olhar é um sangrador.
À janela espreita melancólica a tua casa.
E eu sempre esperei, com alma a escorrer,
Que espreitasses enquanto me crescem as asas.

D.P.

quinta-feira, junho 23, 2005

Caixa de música

Esta noite
Vou vestir-me de prata,
Debruçar o meu olhar morto
Pela janela em que te apagas.

Sempre à noite
Sou toda e qualquer casa,
Que escondeu no seu refúgio
A minha última palavra.

Mas nesta e em qualquer noite
O meu beijo de mágoa
Será sempre o único alento
A vestir-te também de prata.

D.P.

quarta-feira, junho 15, 2005

Fecundidade dos espelhos

Hoje a terra pareceu-me silenciosa.
Pensei – ao abrir a gaveta do meu peito –
Que este era um bom dia para morrer.

Anotei com o pulso da alma
Todas as formas de sufocar em silêncio
E assinei num papel o toque bárbaro das suas feridas.

Mas talvez espere que a fecundidade dos espelhos
Me traga a mulher verde dos meus sonhos
Com dinheiro suficiente para comprar a morte em cada esquina.

Hoje encontrei uma deusa que me pareceu silenciosa.
Senti – ao anular a compra da minha morte –
Que amanhã também o meu espelho se venderia.

D.P.